Poucas coisas se fazem num instante

Outubro 10, 2025

Lembro-me de visitar um médico que guardava um arquivo de cartões com os nomes e histórico dos seus pacientes. Ao ver o seu sistema, sugeri: “Já pensou em digitalizar esses cartões? Fazia isso num instante e ficava muito mais rápido e seguro!”

Sorriu para mim com simpatia e respondeu sem hesitar: poucas coisas se fazem num instante.

Esta frase tem-me acompanhado, e dou-lhe cada vez mais razão.

  • Quando estou a configurar uma aplicação ou software, lembro: poucas coisas se fazem num instante.
  • Quando estou há meia hora numa tarefa de bricolage, lembro: poucas coisas se fazem num instante.
  • Quando quero resolver um projeto num só dia, lembro: poucas coisas se fazem num instante.

Almocei com o CEO de um Hospital que afirmava confiante: “dentro de meses vamos mudar completamente o check-in de pacientes, para um formato mais ágil sem interação humana.” O almoço foi há 6 anos, o check-in continua igual.

Noutra altura estava numa Universidade que ia implementar um novo sistema CRM, quando o experiente gestor do projeto afirmou de forma triunfante: “basta carregar num botão e o sistema faz aquilo que queremos”. Pelos vistos ninguém carregou no botão até ao dia de hoje.

As coisas levam tempo. E podemos confirmar o mesmo na criação de novas coisas:

  • Os irmãos Wright voaram pela 1ª vez em 1903, mas foi apenas na década de 50 que a aviação se tornou popular.
  • Alexander Bell patentou o telefone em 1870, mas apenas na década de 60 é que se tornou comum para a maioria das famílias.
  • John Bogle inventou os fundos indexados em 1975, mas apenas na década de 90 é que se tornaram populares.
  • A impressão 3D foi anunciada como algo que transformaria o mundo em 1989, mas apenas em 2010 é que começou a ter aplicações generalizadas.
  • A internet teve sua primeira versão em 1969, mas só nos anos 2000 entrou na maioria das nossas vidas.

Há um gap entre inovação e adoção. Como resumiu o professor de Stanford, Paul Saffo: “Demora 30 anos para que uma nova ideia se infiltre na cultura. A tecnologia não impulsiona a mudança. É a nossa resposta coletiva que impulsiona a mudança.”

Porquê a demora?

Porque as coisas levam tempo. O trabalho leva tempo. As tarefas levam tempo. Surgem sempre imprevistos, complicações e demoras.
Porque nós, as pessoas, demoramos a mudar.

Mudar de um dia para o outro? É dificílimo. Ganhar um hábito leva tempo. Perder um hábito antigo, ainda mais.

O que aconteceria se chegássemos a casa e alguém nos apontasse uma arma e dissesse: amanhã ou chegas a horas ou levas um tiro? Talvez amanhã chegássemos a hora, mas dentro de dias seguramente apareceria alguém baleado.

Quem gosta de mudar de um dia para o outro? Quem consegue?

Por isso, ao interagirmos com colegas, ao planearmos projetos ou ao forçarmos uma mudança, precisamos de lembrar: as pessoas levam tempo. Devemos dar espaço ao erro e à demora (se não queremos desesperar…). As pessoas podem não gostar da mudança, oferecer resistência, adiar ou simplesmente estar divididas entre tantas outras coisas. É a nossa natureza.

Maturidade inteligente

Um amigo mais velho e sábio disse-me: “Maturidade é a capacidade de viver com problemas por resolver.”
Para quem gosta de fazer rápido e resolver todos os assuntos, é sinal de maturidade compreender que não conseguimos resolver tudo hoje. É maturidade porque tem em conta a complexidade dos assuntos, as múltiplas pessoas envolvidas, e a compreensão que o que eu queria que acontecesse não é necessariamente o que vai acontecer. Fecho esse assunto hoje, dizem 90% das pessoas que não fecharam o assunto ontem.

Lembremos a citação de Warren Buffet: “não é possível fazer 1 bebé num mês, engravidando 9 mulheres…”.Há coisas que não podem ser apressadas, independentemente dos recursos, talentos ou vontade que tenhamos. É preciso paciência, disciplina e tempo para as coisas se desenvolverem naturalmente.

Isto não se trata de uma resignação. Quem quer um arquivo de papel ou sistemas ultrapassados quando há alternativas melhores?

Procuremos então conciliar duas forças: a inquietação saudável de questionar, inovar e querer fazer melhor, com a aceitação inteligente de que as coisas, e sobretudo as pessoas, levam o seu tempo.

Da próxima vez que nos prometerem que aquele problema se resolve de forma rápida, que está iminente uma tecnologia, que desta vez vai mesmo mudar tudo, lembremos antes há quanto tempo estamos para mudar aquela coisa no trabalho ou em casa que é tão simples e evidente, mas que simplesmente não mudamos.

Lembremos, como dizia o bom médico, que poucas coisas se fazem num instante.

Nós não mudamos num instante.

Aceitar isso liberta-nos – de expectativas irrealistas e de pressa inútil – para tomarmos melhores decisões.

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